Artigo: A democracia no projeto Eixos Temáticos da USP

Por Cibele Rizek, professora do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da USP, e Cicero Araujo, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

Uma nota preliminar, antes de dizer algumas palavras sobre o eixo “Democracia” do projeto Eixos Temáticos da USP, do qual somos coordenadores.

Onze de agosto de 2022 ficará guardado em nossa memória por muitos anos à frente. Nesse dia, a história política do País e a da Universidade de São Paulo se reencontraram, depois de muitos anos. No Largo de São Francisco, o reitor desta Universidade e o diretor da Faculdade de Direito presidiam uma assembleia inusitada, que acolhia vozes do mais extenso e variado espectro possível de movimentos e associações – talvez em tudo os mais divergentes entre si, exceto quanto ao motivo que os trazia ali: expressar seu apoio a dois documentos, um deles gestado nas Arcadas semanas antes, em defesa da democracia e do Estado de direito.

Já faz algum tempo se esperava que esse encontro viesse a acontecer. Nos últimos anos, especialmente depois da meteórica ascensão eleitoral de correntes e forças autoritárias de extrema direita, temos assistido a um pipocar cada vez maior e mais intenso de vozes da sociedade civil que protestam contra os incontáveis abusos que essas forças, assenhoradas da chefia do governo federal, vêm perpetrando contra as instituições da República e contra nossa Constituição. Embora cada uma dessas vozes, com seu dialeto político peculiar, externasse preocupações semelhantes, até então elas não tinham encontrado um foco, um espaço público comum, que tivesse o dom de transformá-las num desabafo uníssono, capaz de reverberar por todo o País. É muito significativo que exatamente a USP, capitaneada por sua quase bicentenária escola de direito, tenha se tornado esse foco. Era como se todas as esperanças da sociedade brasileira por dias melhores – para sua democracia e seu povo – tivessem convergido, naquele momento, para o pátio das Arcadas e as ruas ao seu redor.

O futuro, porém, continua angustiante e incerto. Atravessá-lo requer mobilizar essas reservas de esperança, acumuladas em mais de 30 anos contínuos de experiência democrática – fato inédito em nossa história republicana –, mas também toda inteligência e conhecimento possíveis. O grupo temático “Democracia”, que coordenamos no projeto Eixos Temáticos da USP, pretende ser apenas uma modesta e limitada contribuição tanto ao diagnóstico quanto aos caminhos de superação dos graves problemas que atravessa nosso país nesse terreno.

Mas cabe advertir, de partida, que as questões do eixo Democracia reverberam e mantêm vasos comunicantes com temas como educação, saúde, espaço urbano, violência e segurança pública, produção e distribuição da riqueza… só para ficar em alguns dos mais óbvios. Não há, portanto, uma solução para a crise vivida por nossas instituições políticas descolada do esforço de sanar problemas igualmente graves em outros campos da vida social. Os problemas da democracia são “holísticos”; e assim também os caminhos para saná-los.

Para abreviar, podemos dividir as questões em dois grandes campos: o da fragilidade institucional e o da crise societária. Não resta dúvida que a degradação do funcionamento institucional de nossa democracia não começou com as iniciativas autoritárias do atual ocupante da Presidência da República. Ela é anterior, e permeia todos os poderes constitucionais e todos os níveis da representação política. Os próprios resultados das eleições de 2018, seja para a chefia do Poder Executivo, seja para as cadeiras do Congresso Nacional, não foram “um raio em céu azul”, mas a consequência desse processo mais longo. Os desmandos e abusos em vigor apenas o aceleraram.

A nosso ver, a causa primeira dessa fragilização reside num fato um tanto singelo, porém central: o progressivo desmantelamento do pacto social que tornou possível a promulgação e sustentação da Constituição Federal de 1988. O esforço para erodi-la começou desde muito cedo, através da crítica mil vezes repetida de que ela “não cabia” no País, até transformar-se, nos últimos anos, num processo de virtual desfiliação da cidadania, via o cancelamento de suas cláusulas sociais, trabalhistas e de sustentação orçamentária. Paralelamente, assistimos à crescente intromissão do poder econômico privado, assim como dos poderes burocráticos do Estado, na competição político-partidária. O primeiro, em busca de acesso privilegiado aos fundos públicos, levou a grandes distorções na equidade da disputa partidária, fazendo desacreditar o poder do voto. E os últimos, legitimados pelo pretexto de combater as do primeiro, acabaram consumando sua própria intervenção facciosa, graças ao abuso de tradições jurídicas e ao dar livre curso a velhos sentimentos de ódio aos partidos e à política democrática de um modo geral.

Contudo, permeia esse descarrilhamento constitucional uma dinâmica que atinge a estrutura mesma da representação política – problema, vale ressaltar, que atualmente afeta quase todas as democracias do planeta, inclusive as mais longevas e até aqui tidas como mais estáveis e consolidadas. A destacar, nesse item, a grande dissociação dos políticos profissionais em relação a seus eleitores, que no Brasil ganhou contornos particularmente alarmantes. Ausentes ou ineficazes os mecanismos para mantê-los sob o controle e a vigilância da cidadania, grande parte dos representantes eleitos passou a usar seus cargos para fazer barganhas inconfessáveis – seja com o poder econômico privado, seja com o próprio poder público – visando a sua autoperpetuação.

O dano que esse uso perverso do instituto da representação causa permaneceu mais ou menos invisível, enquanto os principais partidos democráticos, alternando-se no poder, foram capazes de gerar governos programáticos e de sustentá-los ao longo de seus mandatos. Quando, porém, os atuais grupos governantes lograram se assenhorar da máquina administrativa federal, seu esforço desesperado de lá permanecer levou-os a selar um contrato sinistro com as bancadas majoritárias constituídas no Congresso. Estas, não tendo mais nenhum horizonte programático e vertebração partidária capaz de pelo menos limitar o acesso particularista aos fundos públicos, entregaram-se à mais escancarada espoliação, de que o chamado “orçamento secreto” e as emendas parlamentares hipertrofiadas são exemplos notórios.

Pouco adiantará trocar os atuais parlamentares por outros, se o pano de fundo que sustenta essa dinâmica desagregadora não for posto em xeque. Urge repensar todo o sistema de representação, a fim de desarmar os mecanismos que erodem os vínculos entre representantes e representados. Caberia, por um lado, revisar as regras eleitorais que estreitam demais a capacidade dos cidadãos de fazer do voto um instrumento efetivamente poderoso de controle dos parlamentares que escolhem; e, por outro, repensar os procedimentos do próprio Congresso, definindo com mais rigor sobre o quê e como os representantes deveriam tomar decisões, especialmente no que tange os orçamentos públicos. Iniciativas como essas, porém, surtirão efeitos pouco animadores se não forem encontradas, na esteira da interdição de recursos empresariais às campanhas, formas transparentes e equitativas de financiamento público das candidaturas.

A experiência atual de um governo controlado por grupos que ameaçam destruir o regime democrático nos deixa lições importantes. É imperioso restaurar a plena autoridade da Carta de 1988, pois ela é o plano de referência comum de todas as forças interessadas na preservação de nosso regime democrático e, por assim dizer, sua última trincheira. O que não impede o aperfeiçoamento de alguns de seus artigos procedimentais, a fim de torná-los menos vulneráveis a interpretações oportunistas e autoritárias. Apenas a título de exemplo, vale mencionar o artigo 142, que recentemente ensejou a tese maliciosa de que as Forças Armadas deveriam atuar como um suposto “poder moderador” ‒ na verdade, mero pretexto para que voltem a tutelar os poderes civis.

No que respeita ao segundo campo de questões aludido no início – a crise societária ‒, desnecessário detalhar aqui os efeitos devastadores de um longo período de estagnação econômica, aos quais se juntou a crise pandêmica. Nossa democracia permanecerá seriamente fraturada se os governos que emergem das eleições não estiverem dotados da capacidade de atacar sistematicamente males antigos, como a enorme desigualdade social e racial, e males que voltaram a nos assombrar, como as altas taxas de miséria e desemprego. A crise societária semeia a desesperança de parcelas crescentes da população que, sentindo-se desamparadas pelo regime, tornam-se alvos fáceis da pregação autoritária. Porém, mesmo que as formalidades da política democrática sobrevivam, mantidas as condições atuais, é o autoritarismo social, com sua brutalidade sem disfarce, que ganha a dianteira. E o próprio Estado, com ou sem grupos de extrema direita a encabeçá-lo, termina reduzido a suas dimensões mais sombrias: em vez de um provedor da paz e dos direitos, anima-se um multiplicador da violência e da ilegalidade, uma agência hiperpolicial, velha conhecida de nossa história.

Não basta, portanto, afastar o perigo eleitoral do autoritarismo. Esta é, indiscutivelmente, uma tarefa necessária, porém ainda muito limitada e defensiva. Um desafio bem maior está colocado logo à frente: devolver ao Estado sua capacidade de promover políticas públicas de qualidade e larga envergadura, em setores que requerem urgente atenção – tais como educação e saúde pública, habitação, infraestrutura, ciência, indústria. Ao mesmo tempo, há que buscar alianças com todas as formas de vertebração da sociedade civil, do nível local ao regional e nacional, dos sindicatos e associações tradicionais aos movimentos sociais emergentes, todos já engajados na solidariedade e na reanimação do fazer coletivo. Recompor, enfim, as bases materiais e espirituais de nosso regime constitucional.

Por mais complexas as questões aqui levantadas de forma preliminar, elas aguardam enfrentamento não só teórico, mas sobretudo prático. Na condição de pesquisadores e intelectuais, trata-se de explicitá-las e articulá-las em uma linguagem que, partindo dos conteúdos e modos de elaboração próprios à Universidade, possa ser compreendida por um público mais amplo. Do mesmo modo, as propostas visando à superação de ambas, a fragilidade institucional e a crise societária, precisam ser construídas por meio de estratégias de diálogo, que permitam sua recepção e mesmo reelaboração, para além dos limites da reflexão acadêmica.

Este parece ter sido o caminho seguido pela Carta às Brasileiras e Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito, mencionada no início, a até agora mais exitosa contribuição de nossa Universidade à costura de um novo consenso em prol da democracia. Que sirva de exemplo para outras iniciativas no futuro!

Por Jornal da USP

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