Artigo: Base industrial para o desenvolvimento brasileiro

Por Vanderley M. John, professor da Escola Politécnica da USP, e João Fernando G. de Oliveira, professor da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da USP

O que alguns analistas chamam de sociedade pós-industrial depende, mais do que nunca, da indústria. Todos os serviços que mantêm nossa sociedade dependem de máquinas, equipamentos, de um ambiente construído: edifícios, infraestrutura viária, de comunicação, saneamento e geração de energia. O dia a dia da internet está ancorado na mais complexa e longa cadeia industrial jamais construída, que desenvolve e produz computadores e celulares e os equipamentos que fazem a infraestrutura física da internet, cada vez mais poderosos. A importância da indústria ficou visível na pandemia: sem fábricas para transformar os não-tecidos de primeira qualidade produzidos no Brasil em máscaras, nossas equipes médicas ficaram desprotegidas. Sem indústria, não existem serviços nem saúde.A produtividade do agronegócio, o setor mais dinâmico da economia brasileira nos últimos anos, depende de fábricas que forneçam insumos como fertilizantes e biocidas, máquinas e equipamentos e que processem os produtos agrícolas multiplicando seu valor. Uma saca de 60 kg de café vale no mercado internacional cerca de US$ 200, enquanto uma cápsula com 5-6 g é vendida no mercado mundial por US$ 0,6 – 0,8, uma valorização entre 35 e 50 vezes o valor da matéria-prima agrícola que o Brasil exporta. A indústria consegue multiplicar o valor de matérias-primas, oferece empregos e capacita pessoas. Seu papel é fundamental para equilibrar a balança de pagamentos, necessário a um desenvolvimento de longo prazo.

No entanto, nos últimos anos a participação da indústria brasileira no PIB vem caindo. Em outras palavras, a indústria brasileira está encolhendo. Contrastando com a agricultura, a penetração de tecnologias digitais na indústria é baixa, com menos de 1/3 das indústrias usando sensores e automação. Em consequência, a produtividade da indústria brasileira é baixa, afetando os salários, elevando os custos e destruindo a competitividade. Como é tradicionalmente a indústria que concentra parte importante dos empregos com melhores salários da economia, isto reduz também a renda do trabalho. A precoce desindustrialização que experimentamos compromete o crescimento sustentável da economia brasileira como um todo e ameaça a qualidade de vida da população.

Ao mesmo tempo, a produtividade industrial global acelera, impulsionada por um ciclo rápido de inovações, o que progressivamente vem deixando boa parte da indústria nacional cada vez mais longe dos padrões internacionais. Um dos fatores mais importantes que impulsionam a inovação é a digitalização, ou Indústria 4.0, a fusão das máquinas com os softwares e o intenso uso de dados para ganhos de produtividade em todo o ciclo de vida do produto. A crescente robotização da moderna indústria reduz progressivamente a importância do custo da mão de obra na competitividade, destruindo uma vantagem tradicional da industrialização dos países emergentes. Outro vetor importante de inovação na indústria global é o desafio da redução da pegada de carbono, que exige a substituição das tecnologias e produtos atuais em prazo recorde. A crescente frequência de eventos climáticos extremos, como as ondas de calor na Europa, deve acelerar os investimentos rumo a esta transformação. Com poucas exceções, como a indústria de cimento, a indústria e a sociedade brasileiras encontram-se despreparadas para explorar as oportunidades oferecidas, embora o País conte com uma matriz energética limpa, que é potencialmente uma enorme vantagem competitiva.

A estratégia de industrialização voltada para o mercado interno para garantir saldo na balança de pagamentos – conhecida como substituição de importações – não tem sido viável. Isto é particularmente verdade nos setores intensivos em tecnologia que demandam cadeias industriais complexas e que se estendem por vários continentes. Estes setores experimentam uma atualização tecnológica permanente, que demanda investimentos de PD&I planejados em médio e longo prazo e de significativa disponibilidade de capital para investimento de risco, algo somente viabilizado em mercados globais. É isso que demonstram exemplos de empresas industriais brasileiras, que no últimos 20 ou 30 anos tornaram-se multinacionais. A experiência de sucesso destas empresas enseja lições valiosas. Para sobreviver, a empresa industrial precisa ter padrão mundial, com uma cadeia global de suprimentos e de clientes.

A reindustrialização do Brasil vai exigir um esforço coordenado da sociedade, que depende da participação da academia, e a da USP em particular. Em primeiro lugar, a atividade industrial competitiva moderna é fortemente dependente de um fluxo constante de recursos humanos capacitados nas mais modernas tecnologias. É evidente que, quanto maior a parcela da população economicamente ativa com capacitação vocacional elevada (nível superior ou técnico avançado), maiores serão a produtividade e o crescimento econômico.

A USP possui uma grande capacidade de formação de recursos humanos de nível superior tradicional, que pode ser aperfeiçoada para formar profissionais criativos e capacitados para a aprendizagem permanente. É também necessário atualizar a formação de profissionais de mercado dentro dos mais novos conceitos e tecnologia, o que exige escalar a educação continuada, uma tarefa facilitada pelas modernas tecnologias de aprendizagem aberta. Um desafio particular é preparar egressos da pós-graduação, particularmente das áreas de tecnologia e informação, para desenvolver as atividades de PD&I na indústria, única forma de atingir e manter os padrões globais de competitividade necessários à indústria e ao País.

O segundo desafio é aprofundar o apoio à inovação, o que exige derrubar os muros que nos separam da sociedade, aprofundando a colaboração com a indústria e a sociedade em geral. Sem esta colaboração, os conhecimentos gerados na universidade – de nível de maturidade tecnológica tipicamente baixo – raramente chegam ao mercado, condição para que tragam benefícios tangíveis para a sociedade. Isto requer o estabelecimento de canais estruturados de diálogo e colaboração permanentes entre pesquisadores, associações setoriais e empresas líderes, buscando identificar oportunidades, como, por exemplo, a produção e atualização de rotas tecnológicas e de ambientes cooperativos de inovação que sejam abertos à adesão de empresas, como é o caso do hubIC (hubs de inovação e construção digital) voltado para a construção, criado pela USP e a ABCP. Um dos desafios é difundir e criar mecanismos ágeis que permitam conectar de forma criativa o conhecimento de múltiplas disciplinas, gerando soluções inovadoras para problemas reais da sociedade e da indústria e que sejam atrativas.

Diferente da soft-tech, a inovação industrial é tipicamente deep-tech, que exige conhecimentos científicos, substancial infraestrutura de pesquisa, ambos disponíveis tipicamente nas universidades. A introdução da inovação deep tech disruptiva no mercado exige parceiros que possuam capacidade técnica e sejam capazes de realizar investimentos de risco de ordens de grandeza superiores aos investidos na universidade, incluindo a concepção de novas rotas de fabricação, a construção dessas novas fábricas e o desenvolvimento de cadeia de suprimentos e mercados. Felizmente, dispomos de financiamentos como os da Fapesp – PIPE e PITE, e a criação da Embrapii – Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial, que financia parcialmente a pesquisa em unidades credenciadas e com capacitação garantida, reduzindo o risco do investimento inicial. A USP vem progressivamente se adequando e desenvolvendo mecanismos ágeis de contratos e novas formas de parceria, organizando grandes projetos interdisciplinares em cooperação com a indústria. Este processo precisa ser aperfeiçoado e escalado. Um desafio particular é a implantação dos mecanismos de colaboração com startups deep-tech que não dispõem de recursos para investir na pesquisa, em especial as oriundas das atividades dos grupos USP.

Finalmente, a universidade deve se envolver na formulação de políticas públicas consistentes para promover a industrialização com padrão global. Isto inclui incentivos para inovações que aumentem a produtividade e reduzam progressivamente o impacto ambiental da indústria. É particularmente urgente o desenvolvimento de uma política pública de médio prazo previsível que seja capaz de precificar o carbono, ferramenta adotada nos países desenvolvidos para viabilizar as novas tecnologias que irão ser dominantes no futuro. São também necessárias políticas públicas que garantam o oferecimento de matérias-primas e energia limpas, abundantes e de custo competitivo, inovações que produzam soluções competitivas e resilientes às mudanças climáticas, simplificações e modernização do sistema tributário e ainda melhorias profundas no funcionamento da justiça. Incidentalmente, estas políticas não interessam somente à indústria, mas coincidem com a busca de melhor qualidade de vida para todos.

Por Jornal da USP

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