Doenças tropicais negligenciadas: quando elas terão a devida atenção?

A Doença de Chagas e a Leishmaniose são duas enfermidades silenciosas, transmitidas por insetos, perigosas e cuja infecção se dá por meio de parasitos. No entanto, infelizmente essas não são as únicas semelhanças entre elas, pois ambas integram a lista das chamadas Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs), patologias que há séculos têm sofrido com a indiferença e a falta de apoio a pesquisadores que buscam sua mitigação.

No próximo dia 30 de janeiro, é lembrado o Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas e, embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) tenha estipulado um roteiro de novas estratégias para o enfrentamento dessas patologias durante o período de 2021 a 2030, a escassez de investimentos robustos e continuados em pesquisas científicas e a pouca quantidade de ações efetivas contra essas enfermidades ainda permeiam a sociedade. O cenário dificulta, por exemplo, o desenvolvimento de tratamentos eficazes para atender pessoas diagnosticadas.

No Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP, o Grupo de Química Medicinal e Biológica (NEQUIMED), coordenado pelo professor Carlos Alberto Montanari, atua há anos de forma contundente na realização de pesquisas que visam desenvolver e identificar substâncias bioativas que poderão tratar tais enfermidades no futuro. No caso da Doença de Chagas, estudos em andamento com camundongos demonstraram que uma classe de moléculas criadas pelos cientistas mostrou-se eficiente para eliminar o parasito Trypanosoma cruzi, agente causador da patologia, sem causar efeitos colaterais aos animais. Confira o vídeo produzido pelos alunos do Curso de Licenciatura em Ciências Exatas da USP, em São Carlos, Lívia de Moraes Fukui e João Guerra Bussolini, que traz mais detalhes sobre a Doença e as pesquisas realizadas no Instituto.

Os futuros passos da ciência na área de Doenças Negligenciadas, a possibilidade do surgimento de novos tratamentos e o que podemos esperar das autoridades de saúde, tendo em vista as novas estratégias da OMS, são questões que serão abordadas na próxima quarta-feira (27), durante webinar do Ciclo de Palestras e Seminários “Química às 16h”, promovido pelo IQSC. Além da participação do diretor do Instituto, professor Emanuel Carrilho, e de Montanari, a atividade contará com a apresentação do Dr. Jadel Kratz, gerente sênior da Drugs for Neglected Diseases Initiative (DNDi), organização sem fins lucrativos de pesquisa e desenvolvimento de medicamentos para doenças negligenciadas. O evento será online e poderá ser acompanhado ao vivo, a partir das 16h, pelo canal do IQSC no Youtube.

Antes disso, para que os participantes e a sociedade em geral possam aprofundar-se no assunto, a Assessoria de Comunicação do IQSC realizou uma entrevista com o professor Montanari. Ele falou sobre como as Doenças Tropicais Negligenciadas têm afetado a população nos últimos anos, os motivos que levaram essas enfermidades a atingirem tal ponto de negligência, quais ações poderiam ser realizadas a curto prazo para amenizar o atual cenário, em que estágio encontram-se os principais estudos no combate a essas patologias e muito mais! Confira, abaixo, a entrevista completa com o docente.

Entrevista – Carlos Alberto Montanari

Como as doenças tropicais negligenciadas têm afetado a população nos últimos anos? Há um número estimado de pessoas infectadas com essas patologias no Brasil e no mundo?

R: As doenças tropicais negligenciadas (NTDs) estão esquecidas na agenda global de saúde. Por isso, recebem esse título de “negligenciadas”. Entretanto, há que se ponderar sobre incontáveis ações que são realizadas para combatê-las. Mesmo assim, continuam “negligenciadas”. De forma geral, estão relacionadas às áreas tropicais/subtropicais (e também onde há relação com a pobreza) e não recebem a mesma atenção que outras doenças. Devido a fatores migratórios, há hoje uma maior e melhor conscientização sobre seus impactos nos países mais desenvolvidos que o Brasil.  Por exemplo, em 2017, os Estados Unidos, através de sua agência FDA (A ANVISA estadunidense), aprovaram o benzonidazol para o tratamento da doença de Chagas em crianças de 2 a 12 anos. A aprovação ocorreu de forma acelerada, possível quando condições sérias com necessidade médica não atendida podem beneficiar clinicamente pacientes.

Estima-se que as NTDs afetem cerca de 1 a 1,7 bilhão de pessoas no mundo! Há equivalência coletiva à HIV/AIDS, tuberculose ou malária, o que as tornam poderosos inimigos do ser humano e da sociedade.

Entretanto, a morte nem sempre é o pior inimigo. O número total de anos perdidos por causa das doenças com invalidez ou morte prematura em uma determinada população é estimado em 19 milhões! Apesar disso, muito mais recursos são destinados a doenças como HIV/AIDS, malária e tuberculose por causa das elevadas taxas de mortalidade e conscientização pública mais eficiente.

Embora os números oficiais de NTDs também oscilem a depender da fonte, são muitas as doenças ou condições (causadas por parasitos, vírus e bactérias) que estão na mira da Organização Mundial da Saúde (WHO): Infecções por helmintos (Dracunculíase, Echinoccocosis, Trematodíases de origem alimentar, Filariose linfática, Oncocercose, Esquistossomose, Helmintíases transmitidas pelo solo (Ascaridíase, Doenças de ancilostomíase, tricuríase, Estrongiloidíase), Taeniaisis/Cisticercose); Infecções por protozoários (Doença de Chagas, Tripanossomíase humana africana, Leishmanioses); Infecções bacterianas (Úlcera de buruli, Hanseníase (doença de Hansen), tracoma, Bouba (treponematoses endêmicas)); Infecções fungais (Micetoma, cromoblastomicose e outras micoses profundas); Infecções virais (Dengue e Chikungunya, Raiva); Infestações por ectoparasitas (Escabiose e outros ectoparasitas); Doenças ou condições não infecciosas (- Envenenamento por picada de cobra). A doença causada pelo vírus Zika não está listada como uma NTD, mas há organizações que entendem ser o Zika um candidato a NTD.

Muitas delas são candidatas à eliminação até o ano 2030: Leishmanioses, Esquistossomose, Chicungunha, Doença de Chagas, hanseníase, etc. (as mais conhecidas no Brasil). Entretanto, se o Brasil continuar na marcha atual, não fará parte desse marco. Infelizmente, marcos previamente estabelecidos são, costumeiramente, renovados. Assim, um novo roteiro para doenças tropicais negligenciadas para o período 2021–2030 foi elaborado pela WHO. Os principais compromissos são: (i) redução para 90 % das pessoas com necessidades de intervenções devido a doenças tropicais negligenciadas; (ii) 75 % de redução percentual nos anos de vida ajustados por incapacidade a cada ano; (iii) 100 países que tenham eliminado pelo menos uma doença tropical negligenciada; (iv) 2 doenças tropicais negligenciadas erradicadas!

Considerando que as NTDs são frequentemente esquecidas pelas autoridades competentes ou órgãos de decisão, até mesmo os números são negligenciados! Por exemplo, além de não sabermos ao certo os números no mundo, no Brasil a situação não é diferente. A WHO estima 7 milhões de pessoas infectadas com o T. cruzi no mundo, sendo 3 milhões no Brasil! A Leishmania visceral, que é a forma mais grave das leishmanioses, pode levar o percentual de morte a 90%. Mais de 1 bilhão de pessoas vivem em áreas endêmicas para leishmaniose e estão sob risco de infecção. Estimam-se que 30.000 novos casos de leishmania visceral e mais de 1 milhão de novos casos de leishmania cutânea ocorram anualmente. Todos os anos, são mais de 3 mil casos no Brasil. O principal hospedeiro em áreas urbanas é o cão domesticado que começou a ser tratado somente a partir de 2018. Embora a infecção canina seja mais efetiva que a do ser humano, parece existir uma relação entre ambos. Além disso, segundo a WHO, o Brasil tinha, em 2018, mais de 28 mil casos de pessoas com hanseníase.

Quais iniciativas/ações poderiam ser tomadas a curto prazo para tentarmos amenizar o atual cenário?

R: A WHO recomenda cinco intervenções estratégicas básicas para lidar com o fardo das NTDs: quimioterapia preventiva (PC); gestão de casos individuais; controle de vetores; água, saneamento e higiene (WASH); e saúde pública veterinária.

Uma razão que surge geralmente para justificar a negligência com essas doenças é que elas não apresentam interesses comerciais em vista dos investimentos em pesquisa. Consequentemente, patentes e lucros não desempenham qualquer papel no estímulo à inovação. Dessa forma, com exceções, as fases de descoberta de novas formas de tratamento, por exemplo, estão à mercê da academia (no Brasil e no mundo).

Uma solução já amplamente propalada, mas que ainda não decolou (nem por aqui e nem mundo afora…) é a chamada parceria público-privada (PPP) em que autoridades e organizações competentes fariam investimentos em inovação em conjunto. Já existem exemplos de parcerias no Brasil que, embora ainda tímidas do ponto de vista “disruptivo”, são importantes. De qualquer forma, são avanços que embora lentos são contínuos! O exemplo digno de nota é a DNDi que é uma iniciativa dedicada ao desenvolvimento de fármacos para doenças negligenciadas. O portfólio de parcerias de desenvolvimento de produtos inclui vacinas, microbicidas, produtos terapêuticos e diagnósticos.

Outra solução que seria viável, como no exemplo da Campanha USP Vida de Combate à COVID-19, seriam as doações.

Efetivamente, o Brasil precisaria definir metas de desenvolvimento sustentável com base em indicadores da carga nacional dessas doenças.

Resumidamente, em que estágio se encontram os estudos para o desenvolvimento de fármacos contra essas enfermidades?

R: Uma forma de avaliar refere-se ao número de novas entidades químicas (NCEs) aprovadas para tratar NTDs. Porém, são raras as novas entidades químicas para o tratamento dessas doenças negligenciadas. Recentemente (2019), o fexinidazol foi aprovado para o tratamento da doença do sono na República Democrática do Congo em um excelente programa científico da DNDi.

A falta de novos tratamentos ou tratamentos com efeitos colaterais adversos e muitas vezes inaceitáveis para doenças que ainda são de urgência médica (NTDs) é uma realidade universal. Com a deficiência de investimento claro e objetivo, contínuo e massivo, as perspectivas são desafiadoras.

O cenário para vacinação também não é animador. Das cerca de 20 doenças tropicais negligenciadas, nenhuma é contemplada com vacinas, embora algumas estejam em estágios experimentais. Por exemplo, ainda não existe uma vacina comercial para a leishmaniose humana, mas já existem alternativas para leishmaniose canina. Consequentemente, parece razoável estender a pecha de “vacinas negligenciadas” para NTDs.

As vacinas desenvolvidas em tempo recorde para a COVID-19 demonstram que as vacinas necessárias para prevenir doenças negligenciadas também poderiam ser desenvolvidas rapidamente! Há, naturalmente, aspectos técnico-científicos amealhados nesta premissa.

No Brasil, como você avalia a atuação da ciência no combate às DTNs? O País conta com poucos grupos que atuam nessa linha de pesquisa?

R: Os investimentos em ciência no Brasil para doenças negligenciadas também são negligenciados. Por exemplo, o Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil do CNPq tem uma lista de 125 grupos que são listados quando a busca da linha de pesquisa é realizada por consulta parametrizada usando os termos “doenças tropicais”. Esse número é reduzido para 41 quando os termos “doenças tropicais negligenciadas” são usados.

Esses grupos são formados por pesquisadores(as) de excelente formação que se beneficiaram (e beneficiam-se) dos excelentes programas de pós-graduação que o Brasil introduziu de forma eficiente. Por que então a área pode ser considerada negligenciada? Em minha visão, por duas razões essenciais: (i) falta de investimento à altura da complexidade inerente da ciência que está envolvida e, por isso, não leva a inovações radicais ou disruptivas e (ii) falta de uma temática que congregue conjuntamente as ações da gênese planejada de fármacos (incluindo vacinas) e que empregue as diferentes expertises necessárias para produzir essas inovações.

Além disso, ainda há outra questão desafiadora. Trata-se de um investimento de elevado custo financeiro e que pode resultar em falha absoluta quando os candidatos a fármacos atingirem as fases clínicas (testes em seres humanos que sofrem de alguma NTD). Entretanto, tenho considerado o número de anos necessários para alcançar os objetivos de introdução de um novo tratamento para NTDs como sendo pouco significativo. Por que? Porque eu sou fascinado por pequenas moléculas orgânicas. Os salicilatos, por exemplo, de onde vem um dos medicamentos mais maravilhosos de toda a história da indústria farmacêutica – a aspirina (produzida por síntese ao final do século XIX), precisaram de mais de 3.000 anos para que o mecanismo de ação fosse descrito em meados da década de 1970! Com os avanços tecnológicos iniciados no final do século XIX e que estendem-se pelo XXI, 12-15 anos são necessários para uma descoberta positiva (ou falha dela), que valem a pena por uma vida humana.

Na sua visão, por que tais doenças chegaram ao ponto de serem consideradas negligenciadas? Por que não foi dada a devida importância para elas ao longo da história?

R: Esta é uma questão multifatorial. Os medicamentos existem na sociedade humana provavelmente há tanto tempo quanto as próprias doenças. Talvez se usássemos uma das máximas de Mahatma Gandhi que diz que neste planeta “temos o suficiente para as necessidades de todos, mas não para a ganância”, teríamos avançado e dado mais importância para quem sofre dessas doenças.

Hoje estamos aturdidos pela COVID-19 e, ao mesmo tempo, esperançosos quanto às vacinas que foram desenvolvidas de forma eficiente em tempo recorde (vamos tomar a vacina). Por que? Porque há anos existem estudos realizados que amparam-nas agora com dados, informações e conhecimento que resultaram na criatividade exibida para a criação de vacinas. Ou seja, não é apenas pela urgência da vacinação, porque se assim o fosse, não teríamos vacina alguma. Mas elas estão aí graças aos desenvolvimentos científicos e tecnológicos e seremos vacinados em tempo recorde.

Façamos um contraponto com a dengue que é observada em 129 países e que tem potencial para infectar mais de 3,9 bilhões de pessoas. Cerca de 96 milhões de casos da doença e 40 mil mortes são registrados a cada ano. Mesmo assim, existe apenas uma vacina, a Dengvaxia, que está disponível para proteger apenas as pessoas que já tiveram uma infecção anterior causada pelo vírus da dengue.

A solução parece fácil. O SARS-CoV-2, o novo coronavírus que causa a COVID-19, tem um elevado poder de infecção (exacerbado com novas variantes) e quando grave pode resultar na morte de seu portador. Consequentemente, no mundo globalizado de hoje em que as viagens aéras são comuns, o vírus espalhou-se (e espalha-se) universal e rapidamente pelo planeta. E, assim, exigiu ações rápidas. Excelente. Perfeitamente explicado. Entretanto, não serve de justificativa para que as outras doenças não recebam cuidado continuado e assim permaneçam negligenciadas.

Além da constante escassez de recursos, quais outros desafios são enfrentados na realização de pesquisas para o combate das doenças tropicais negligenciadas?

R: Somente um procedimento integrativo de cientistas com expertise em doenças tropicais seria capaz de levar ao controle e eliminação das NTDs. Há movimento global nessa direção, mas ele ainda é tímido.

Enquanto pesquisador, o que te motivou a ingressar nessa área de estudo? A negligência enfrentada por essas doenças é um fator que te estimula a pesquisar e desenvolver novas soluções para essas enfermidades?

R: Em uma palavra? A negligência! Precisamos ser esperançosos, mas com esforço convergente. As nossas universidades de pesquisa nem sempre são reconhecidas como tal. E, quando o são, ainda causam estranheza! Naturalmente, mesmo assim, estamos sem dinheiro. O Brasil tem uma enorme dívida social. A maioria das universidades de excelência é propriedade dele e dos estados. Se os governos não conseguem fornecer a infraestrutura necessária e básica para as pessoas que governam, como irão investir seriamente em NTDs? Estamos certos de que a resposta virá (hoje padece de extrema inópia!). Eu também acredito que, da motivação pujante por pesquisas de alta qualidade em NTDs, os fundos devem ser fornecidos. Ao mesmo tempo, não partilho da ideia de que inovação não pode ser conseguida na Universidade e a balda de que só publicamos artigos científicos não é totalmente verdadeira. É fato que fazemos pesquisa básica e isso é fundamental na academia. O exemplo já mencionado sobre a rapidez no desenvolvimento das vacinas (são mais de 40 em estudos) são testemunhos inequívocos desta enunciação. Contudo, se os fundos existissem em soma suficiente e de forma continuada, conseguiríamos navegar pelo espaço químico-biológico das NTDs de forma mais eficiente e mais rápida.

Ainda mais, hoje, mais que nunca, há grandes chances de empreendedorismo. No início de minha carreira como pesquisador, empreendedorismo não era uma palavra ou conceito de domínio comum. Hoje, tenho pensado seriamente em não terminar os meus dias como Professor e Pesquisador na USP, mas sim tenho alimentado a esperança de, ao aposentar-me, enveredar-me pelo empreendedorismo direcionado exclusivamente para as NTDs.

No caso específico da Doença de Chagas, uma das principais enfermidades que seu grupo de pesquisa trabalha, qual o grau de avanço dos estudos que estão sendo conduzidos no IQSC? Quais os próximos passos?

R: O nosso trabalho de pesquisa avançou no quesito inovação somente quando fomos contemplados com um projeto temático da FAPESP. Nesse momento, tivemos a oportunidade de reunir um pequeno grupo de pesquisadores de excelente galhardia científica e estabelecer colaborações internacionais que propiciaram um avanço significativo de nossos trabalhos na gênese planejada de fármacos para a doença de Chagas. Saímos das fases do planejamento molecular (em computadores) e conseguimos identificar novos candidatos a fármacos para o tratamento da doença de Chagas, que foram testados em processos in vitro (testes em células infectadas com o Trypanosoma cruzi) e in vivo (testes em camundongos). Nos testes com animais, avaliamos qual foi a reação do organismo ao receber os candidatos a fármacos, além de estabelecer a capacidade de combater a doença. Demonstramos em estudos secundários a ausência de efeitos colaterais e que as substâncias que desenvolvemos foram eficientes nos tratamentos realizados em camundongos, que nunca morreram por complicações da doença de Chagas. No entanto, ainda é preciso avançar antes de vislumbrar os ensaios clínicos em seres humanos. Só que para isso, precisamos de parcerias.

Recentemente, cerca de 20 moléculas estudadas por seu grupo contra a Doença de Chagas se mostraram promissoras contra o novo coronavírus em testes iniciais realizados em laboratório. Como isso foi possível? 

R: Neste caso, usamos o conceito comum de reposicionamento de fármacos. A estratégia do Grupo de Química Medicinal e Biológica do IQSC/USP está baseada na busca incessante por moléculas pequenas capazes de modular cisteíno endopeptidades. Essas enzimas têm várias funções importantes, tanto em organismos infecciosos como no ser humano. O SARS-CoV-2, o vírus que causa a COVID-19, tem, dentre suas 29 proteínas, duas que são classificadas como cisteíno endopeptidades, que são conhecidas como PLpro (clã das peptidases CA – tipo mamão papaia) e a Mpro (protease principal do novo SARS coronavírus). Elas possuem semelhanças com a cruzaína, a cisteíno endopeptidade responsável por manter ativo no corpo humano o Trypanosoma cruzi, parasito causador da Doença de Chagas. As moléculas desenvolvidas para inibir a cruzaína no NEQUIMED são as mesmas que estão sendo testadas na PLpro e Mpro e também no SARS-CoV-2. Como essas e outras enzimas proteolíticas tanto do hospedeiro quanto do vírus atuam de forma combinada para regular e coordenar etapas específicas da replicação e montagem viral na célula hospedeira, nossa hipótese era que a inibição delas levaria à cessação da replicação viral. Assim, em ensaios preliminares realizados por nossos colaboradores no ICB/USP, 20 de nossos inibidores de cisteíno endopeptidades foram 100 % eficazes no controle da replicação intracelular do vírus em células hospedeiras. Agora esses compostos estão em ensaios para a avaliação da concentração-resposta e julgamento de suas importâncias como agentes anti-SARS-CoV-2 para a COVID-19.

O que você espera do futuro das pesquisas para o combate das doenças negligenciadas? Qual sua perspectiva para os próximos anos e o que podemos esperar da ciência nesse sentido?

R: A ciência nunca empaca. Um país soberano precisa de uma ciência forte e perene. Algumas das ações que, neste momento, precisam ser melhor avaliadas, incluem o reconhecimento de que as NTDs são um caso de saúde pública no Brasil e no mundo. Com isso, elas deixariam de ser ignoradas pela comunidade e experimentariam maiores esforços das autoridades e organizações. Por exemplo, as leishmanioses, hanseníase e doença de Chagas poderiam entrar efetivamente na mira das ações para que em 2030 pudessem entrar no rol das eliminadas. E, claro como já enfatizado, financiamento continuado para pesquisa e desenvolvimento para ampliar as intervenções comprovadas, desenvolver e implantar novas ferramentas de diagnóstico, expandir e fortalecer a vigilância baseada em dados para ajudar a tomar decisões. Inovar com as tecnologias digitais no setor de saúde (e-Saúde) em que a tecnologia da informação e comunicação para o propósito de prevenção, diagnóstico, tratamento, controle e administração nos cuidados da saúde. O advento da Química 4.0 está à nossa disposição, basta enfrentá-lo!

Quais necessidades urgentes: tratamento oral, seguro, eficaz, de baixo custo e de curta duração para todas as NTDs!

Texto e entrevista: Henrique Fontes, da Assessoria de Comunicação do IQSC/USP

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